Era um quarto pequeno que fechavas à chave por dentro, para assegurar que não seríamos surpreendidos pela curiosidade das crianças que dormiam dois andares acima.
Lembro-me que havia brandos odores distribuidos pela casa: a frutas e chá, na cozinha; a gatos e ração, na garagem; ao teu perfume, na sala. À cave tinha sido atribuído um indulgente odor a mofo que lhe transmitia a serenidade própria dos espaços reconditos.
Não era sequer necessário procurar no salitre da parede, ao fundo das escadas, a razão técnica para as infiltrações de humidade — o cheiro contava a história.
Eu gostava de sentir a identidade olfactiva da tua casa. Transmitia uma riqueza construtiva, tão respeitável como a arquitectura dos espaços, da luz, e dos ambientes que a desenhavam.
Havia uma cama, uma cómoda, um roupeiro e um aparelho de ginástica daqueles que se compram por primor atlético mas depois, raramente se usam.
A cómoda era um volume inerte que ganhava vibração com as velas que lhe punhas em cima solenizando os momentos de entrega a que nos dedicávamos; o roupeiro, entreaberto, deixava entrever um alinhamento de camisas de homem, de colorido Façonable e tom desportivo, vestígios de um casamento recentemente rasgado, cujas sequelas transpareciam nos teus olhos mais do que no axadrezado conteúdo do armário.
O nosso amor era também isso, uma celebração de corações partidos por outras dores.
Ocorre-me a memória daquela noite. Faziamos amor ardente na cama estreita. O teu corpo por cima espetando-se deliberadamente no meu. A luz das velas definia o recorte da tua cara, da tua boca de lábios flacidamente entreabertos e olhar revirado, focado nas entranhas. Eu esvaía-me de prazer. Era tarde, de madrugada. E a volúpia das madrugadas parecia aumentar-te o desejo porque, sendo roubada ao sono, era mais valiosa.
A ardência apoderara-se de nós e eu lembro-me de ter puxado as tuas ancas num aperto contra o meu sexo, e murmurado no teu ouvido um sussurro cutâneo com origem num arrepio que me subiu a espinha antes mesmo de se transformar em pensamento: — Amo-te, quero ter um filho teu!
A expressão, arrebatadora, haveria de me perseguir por muito tempo ganhando afasia e peso de intriga.
Nunca ousei partilhar esta memória contigo, mas a reconstituição dessa noite fundacional tem atravessado frequentemente a órbita das minhas espirais de solidão.
Teria sido apenas um arremesso verbal, motivado pela volúpia?
Quantos homens e mulheres terão nascido fruto de semelhante pulsão criadora? Povos inteiros, certamente. E veio daí algum mal ao mundo?
“Amo-te, quero ter um filho teu!” A beleza crua da estocada ecoa ainda em mim, como se as frases do amor e do sexo merecessem interpretação semântica.
Passaram-se anos. Não fizemos nenhum filho.
Eventualmente nunca o faremos.
Será demasiado tarde no nosso ciclo biológico?
Será desapropriado?
Ainda assim ficou o momento, valeu a hipérbole... mesmo gerada num quarto de cave, fechados à chave.
O amor constrói-se destes pequenos instantes.
Lembro-me que havia brandos odores distribuidos pela casa: a frutas e chá, na cozinha; a gatos e ração, na garagem; ao teu perfume, na sala. À cave tinha sido atribuído um indulgente odor a mofo que lhe transmitia a serenidade própria dos espaços reconditos.
Não era sequer necessário procurar no salitre da parede, ao fundo das escadas, a razão técnica para as infiltrações de humidade — o cheiro contava a história.
Eu gostava de sentir a identidade olfactiva da tua casa. Transmitia uma riqueza construtiva, tão respeitável como a arquitectura dos espaços, da luz, e dos ambientes que a desenhavam.
Havia uma cama, uma cómoda, um roupeiro e um aparelho de ginástica daqueles que se compram por primor atlético mas depois, raramente se usam.
A cómoda era um volume inerte que ganhava vibração com as velas que lhe punhas em cima solenizando os momentos de entrega a que nos dedicávamos; o roupeiro, entreaberto, deixava entrever um alinhamento de camisas de homem, de colorido Façonable e tom desportivo, vestígios de um casamento recentemente rasgado, cujas sequelas transpareciam nos teus olhos mais do que no axadrezado conteúdo do armário.
O nosso amor era também isso, uma celebração de corações partidos por outras dores.
Ocorre-me a memória daquela noite. Faziamos amor ardente na cama estreita. O teu corpo por cima espetando-se deliberadamente no meu. A luz das velas definia o recorte da tua cara, da tua boca de lábios flacidamente entreabertos e olhar revirado, focado nas entranhas. Eu esvaía-me de prazer. Era tarde, de madrugada. E a volúpia das madrugadas parecia aumentar-te o desejo porque, sendo roubada ao sono, era mais valiosa.
A ardência apoderara-se de nós e eu lembro-me de ter puxado as tuas ancas num aperto contra o meu sexo, e murmurado no teu ouvido um sussurro cutâneo com origem num arrepio que me subiu a espinha antes mesmo de se transformar em pensamento: — Amo-te, quero ter um filho teu!
A expressão, arrebatadora, haveria de me perseguir por muito tempo ganhando afasia e peso de intriga.
Nunca ousei partilhar esta memória contigo, mas a reconstituição dessa noite fundacional tem atravessado frequentemente a órbita das minhas espirais de solidão.
Teria sido apenas um arremesso verbal, motivado pela volúpia?
Quantos homens e mulheres terão nascido fruto de semelhante pulsão criadora? Povos inteiros, certamente. E veio daí algum mal ao mundo?
“Amo-te, quero ter um filho teu!” A beleza crua da estocada ecoa ainda em mim, como se as frases do amor e do sexo merecessem interpretação semântica.
Passaram-se anos. Não fizemos nenhum filho.
Eventualmente nunca o faremos.
Será demasiado tarde no nosso ciclo biológico?
Será desapropriado?
Ainda assim ficou o momento, valeu a hipérbole... mesmo gerada num quarto de cave, fechados à chave.
O amor constrói-se destes pequenos instantes.
João Salvado
João Salvado (1960), é jornalista, diretor de TV e professor de direção em uma universidade privada de Lisboa. É também o responsável pelo programa de TV "3810", da Universidade de Aveiro e de mais alguns programas de entrevistas, um programa de rádio e tem blogs de crítica e opinião em sitios pela internet. Escreve textos curtos de diferentes naturezas e temas.
João Salvado (1960), é jornalista, diretor de TV e professor de direção em uma universidade privada de Lisboa. É também o responsável pelo programa de TV "3810", da Universidade de Aveiro e de mais alguns programas de entrevistas, um programa de rádio e tem blogs de crítica e opinião em sitios pela internet. Escreve textos curtos de diferentes naturezas e temas.
Agradecimento ao João Salvado e ao Site: http://www.releituras.com/
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